Já falei dos saudosos carnavais do tempo da Usina Trapiche, onde ficaram as minhas primeiras impressões dessas festas tão alegres de Momo. Aqueles, eram carnavais inocentes, quase festas familiares, sem excessos , sem o glamour do carnaval de hoje.O carnaval da época era um tanto saudosista e talvez esse fosse o seu encanto. As pessoas carregavam na memória aquela visão de uma festa com fantasias caprichadas, bailes de máscara com um caráter um tanto elitista. As manifestações populares aconteciam sem a participação maciça da sociedade. Os blocos saiam às ruas com seus integrantes e em grande estilo , se exibiam de forma organizada , dando valor às suas tradições e alegrando os expectadores. Não havia multidão se espremendo e disputando um espaço ,a qualquer custo. Não havia a exposição deprimente de mulheres que fazem questão de mostrar seus corpos malhados e nus, numa verdadeira exibição digna das orgias da Roma antiga.
Mamãe falava do corso da sua época, como um desfile de carros abertos, que certamente eram muito poucos, onde as pessoas fantasiadas, jogavam umas nas outras, confetes , serpentinas e jetons ( um tipo de bombons que continham um líquido colorido e que em contato com o alvo deixava uma mancha e um perfume que em seguida se desfaziam). Uma forma de despertar a atenção dos rapazes e moças que participavam dessa batalha romântica. Claro que se tratava de um carnaval elitizado, sem cunho de festa popular, com belas marchinhas e frevos, que até hoje são sucesso, pela sua qualidade musical e poética.
Os tempos foram mudando o carnaval , cada vez mais ,assumindo características bem diversas do que era antigamente. Não sou do tempo do corso bonitinho , com jetons coloridos mas acompanhei de perto a evolução dessa festa bem nossa. Quando mocinha, tive oportunidade de viver os carnavais de Recife, que são inesquecíveis. Por volta dos anos 60, a coisa era boa demais. Havia o corso, que era o desfile de carros por determinadas ruas da cidade e não tinha nada de romântico. As pessoas brincavam no meio da rua, todas preocupadas apenas em se divertir. Era uma imensa bagunça que durava o dia inteiro, um mela-mela e muita alegria. A participação dos jovens e famílias , era maciça. Todos extravasavam sua alegria com o prazer de sujar todo mundo de tudo quanto era coisa. Voltávamos do corso , imundos , molhados e exaustos, mas felizes e era só dar um tempo para depois ir para os clubes e dançar a noite toda. Os clubes como Internacional, Português, Náutico, Caxangá, Country , eram os mais badalados com carnavais inesquecíveis.
A farra do corso acabou. Deixou de ser uma diversão para se tornar uma preocupação .A brincadeira de mela-mela, a principio inocente e desprovida de maldade, assumiu um aspecto de violência e caso de polícia. Infelizmente algumas pessoas se aproveitam de situações de muito movimento para por prá fora os seus demônios e fazer maldades, o que acaba privando os outros de determinadas coisas. Isso acontece todo dia, infelizmente, não só no carnaval como em todas as manifestações públicas. A euforia elimina o respeito e alguns partem para a agressão, o que é lamentável. Podemos ver nos Shows e festas populares com grandes aglomerações, esse tipo de coisa que assusta e inibe a alegria de quem está ali para se divertir realmente.
Lembro que na época , o pavor das mulheres , era um baile que todo ano acontecia na Estrada dos Remédios, na Segunda Feira de Carnaval : o ameaçador Baile dos Casados. Não sei como era, só entravam homens casados e naturalmente as piriguetes de plantão. Os homens tiravam o maior sarro das esposas, ameaçando ir no maldito baile.
Em Recife e Olinda , o carnaval de rua sempre foi uma tradição com todas as formas de manifestações culturais. Sempre houve os blocos famosos, que saem às ruas arrastando o povo que gosta de acompanhá-los. Quem nunca ouviu falar dos tradicionais Bloco das Flores, Andaluzia, Pirilampos , Bloco da Saudade e muitos outros , cantados nos frevos de nossa Recife antiga. Sempre houve os Caboclinhos, os Maracatus e as troças que com o tempo foram se tornando a grande atração, principalmente do carnaval de Olinda, com seus engraçados bonecos gigantes, blocos famosos como"Elefante"e "Pitombeira" , “Homem da meia noite”, “Menino do meio dia” produtos da criatividade de um povo que se diverte com qualquer coisa. Em Recife, o bloco Galo da Madrugada, se tornou um fenômeno em quantidade de pessoas que arrasta pelas ruas, famoso em todo o país. Enquanto Recife aderiu aos trios elétricos, em determinada região, Olinda preservou o carnaval tradicional, com seus blocos e troças subindo e descendo suas ladeiras só terminando a folia de Momo com o “Bacalhau do Batata”, bloco que sai às ruas , na Quarta Feira de Cinzas. Se deixar ,o povo não para de brincar. Continua até hoje a proteger as suas tradições, não permitindo a entrada dos trios elétricos e da música eletrônica. Recife, por sua vez, restaurou o centro da cidade, onde se desenvolve um carnaval de qualidade, com as manifestações populares e um destaque especial à música e cantores da região. É lindo ver tudo isso ! Um povo só é verdadeiramente feliz e autêntico, quando consegue expressar a sua cultura, as suas tradições , sem se contaminar com as novidades que surgem, por mais interessantes que sejam. O Carnaval de Salvador, com sua característica própria dos trios elétricos e seu estilo musical do Axé se tornou uma das maiores atrações turísticas, merecendo os nossos aplausos e de todos que se dispõem a curtir esse tipo de festa popular.
Hoje, do “ CAMAROTE VIP”, que a idade me proporciona, observo com muita satisfação um certo retorno às tradições do nosso País. Há com certeza uma maior preocupação em se restabelecer certas coisas que se perderam com o tempo. O Rio de Janeiro, terra do samba, por exemplo, com seu monumental desfile de Escolas de Samba, que aliás diga-se de passagem, é um espetáculo deslumbrante e rico, atraindo turistas do mundo inteiro, por muito tempo, apenas valorizou esse item, digno de todos os elogios.É o carnaval fabricado para deleite especialmente dos turistas. Há uma máquina financeira que promove a festa, esquecendo um pouco as raízes do “Samba no pé” do carioca da Comunidade que passa o ano inteiro participando dos ensaios e trabalhando pela sua Escola, quando promovem figuras famosas que às vezes não tem nada a ver com o povão, que vibra e vive a emoção do carnaval . O grande foco é a competição, o espetáculo cada vez mais rico e mais encantador. Fora isso, o carnaval de rua ficou esquecido, salvo os vários blocos que são famosos como o Bola Preta , podemos ver aqui e ali alguns “Clovis”, derivação de”Clown” figuras folclóricas que saem às ruas com suas roupas coloridas e mascarados, munidos de bexigas , fazendo barulho, sem música, isolados ou em grupos. Hoje, os blocos proliferam e podemos vê-los a cada ano com maior força. O povo quer participar dos festejos sem ter que necessariamente pagar para isso ou ter que ensaiar o que vai fazer. Adorei ver, no carnaval passado, o povo do Rio se divertindo com irreverência e improvisação, formando grupos animados e arrastando quem quisesse participar.
Eu , sem dúvida alguma , adoro carnaval e fui uma grande foliona, daquelas de correr atrás de tudo que era troça, subindo e descendo as ladeiras de Olinda, vestida de alma ou de Emília e segurando o estandarte do bloco que criamos , o Sobe e Desce, que virou um bloco famoso, sob a direção do meu querido e saudoso amigo Fernando Gondim. No início, éramos quatro gatos pingados, subindo e descendo as ladeiras e cantando a música criada por ele que era assim: “ O que desce sobe, / o que sobe desce,/ É verdade a dita e dura/ Caia na folia meu bem, / Que a vida é , é merda pura! Não precisa dizer que estávamos em plena DITADURA.
Brinquei muitos carnavais e tomei muitos porres. Um deles foi com Murilo. Depois de bebermos tudo que encontramos pela frente . Sentei no meio-fio e bêbada que nem um gambá, comecei a falar “ Murilo, dizem que nós dois somos a cara de um o (... )do outro . Eu só não sei se eu sou sua cara ,ou se você é o meu ( ...)”. Outra vez, Luiza foi passar o carnaval comigo, lá em Olinda e nós aprontamos todas. Havia tanta gente lá em casa, que tinha que haver revezamento na hora de dormir. Uma noite, estávamos na praça na maior confusão do carnaval, quando eu vi em uma barraca ,o Senador Marcos Freire, que eu sabia quem era por ser uma pessoa famosa, mas não conhecia. Falei prá Luiza que ia cumprimentá-lo porque era meu amigo. Ela duvidou e eu fui até ele que, educada e politicamente me abraçou e beijou, como se me conhecesse. Não se conformando, ela foi lá e fez a mesma coisa, me desmoralizando. Rimos muito e essa história rendeu muita gozação dela prá cima de mim.
Bons tempos que já foram e que recordo com muito prazer e muita saudade. Acho que a natureza é muito sábia. À medida que vamos envelhecendo, nossos valores vão mudando e nossa visão adquire um foco diferente do passado. Valorizamos determinadas coisas que antes não nos chamava atenção. Hoje eu vejo com mais apreço as manifestações populares da nossa terra, entendendo melhor a necessidade de se preservar tanta riqueza cultural, não deixando que se perca no tempo. Muito bom seria se todos pensassem dessa forma e procurassem cultivar e resgatar todo esse tesouro tão precioso ,que temos.
Como seria bom se nossos jovens pudessem participar dessas festas populares sem medo e livres da influencia perversa das drogas , da incitação vulgar e escancarada do sexo, do apelo exagerado à sensualidade, da exposição dos corpos despidos , numa libertinagem desnecessária. Como seria bom ver nossos filhos e netos se divertindo com alegria e despreocupação, dentro dos limites dos bons valores sociais , sem essa constante ameaça à vida e à integridade física de cada um !
Vamos curtir o CARNAVAL !!!
Graça,fev/2012